quinta-feira, 8 de maio de 2025

Tesouros Cinéfilos - Entre os Muros da Escola (Entre les Murs)

De: Laurent Cantet. Com François Bégaudeau, Jean-Michel Simonet, Boubacar Touré e Rachel Régulier. Drama, França, 2008, 128 minutos.

Vamos combinar: quem assiste Entre os Muros da Escola (Entre les Murs) normalmente se surpreende com o caráter naturalista da obra. Esse é um filme de sala de aula. Aliás, de muita sala de aula. Com professor e alunos dialogando, gritando, colidindo, rindo se confrontando. Só que, aqui, diferentemente do que ocorre no subgênero das produções escolares - em que a encenação toda pode soar meio fake -, temos a impressão de a câmera ter sido apenas ligada no ambiente de uma escola de verdade, com os estudantes tendo sido estimulados a apenas agirem como se estivessem, de fato, em aula. Adolescentes se provocando, olhando para trás o tempo todo, tirando sarro uns dos outros, gaitando. Ou mesmo deitados com ar cansado em cima da carteira. Desgostosos com algo ou apenas insatisfeitos porque essa etapa da vida é um saco mesmo e a gente ainda tem de prestar atenção no que o professor diz. É tudo tão, mas tão realista - e ao mesmo tempo tão magnético, tão envolvente, tão vivo -, que não dá pra sair ileso.

Só que essa representação tão fiel à realidade tem um por quê, que é o fato de o professor François (François Bégaudeau) ter sido não apenas o escritor do livro que baseia a obra dirigida por Laurent Cantet, mas também ser corroteirista. Ou seja, três em um. Que isso vá automaticamente garantir esse caráter de "vida como ela é", bom, talvez não. Mas certamente ajuda. E em si, o filme é uma joia não por possuir algum tipo de grande trama dramática de superação de dificuldades em uma escola de segundo de Ensino Médio de um bairro de classe trabalhadora de Paris (daqueles cheios de imigrantes, pessoas pretas, pobres e, em alguma medida, marginalizadas). Ou mesmo algum suspense emergente, que nos deixe vidrados. Mas por permitir que a gente mergulhe naqueles universos, e reflita sobre aquelas histórias, apenas escutando aqueles alunos curiosos, complexos, cheios de sonhos e de receios sobre uma existência futura que se avizinha.

 


E é importante que se diga, não é porque a produção se passa 80% dentro de sala de aula, com discussões no limite entre o divertido e o aborrecido, que não haja nada acontecendo. Há tudo. Em certa altura, um dos carismáticos estudantes questiona a sexualidade de François . "A gurizada tem dito por aí que você gosta de homens", instiga Boubacar (Boubacar Touré). Sem se alterar, o professor lhe questiona sobre se aquilo faz alguma diferença para o aprendizado. E, bingo, esse assunto nunca mais volta porque, de fato, o que importa é que o docente tenha uma adequada metodologia, ou uma pedagogia eficiente. O que nem sempre será possível e é interessante notar que, a despeito das boas intenções de François, ele também se mostrará, eventualmente, como um sujeito falho, que nem sempre é capaz de conduzir a turma de forma correta, como fica evidente no instante em que ele dá a entender que duas estudantes se comportam como "vagabundas".

E é dessas pequenas complexidades que emergirão os fragmentos mais movimentados e comoventes. Há, por exemplo, um momento em que os meninos debatem longamente sobre seleções de futebol - o que torna o ambiente mais pesado já que, num grupo racialmente miscigenado, pode ser bastante natural que os filhos de imigrantes africanos, tenham preferência pela Costa do Marfim ou pelo Mali, em detrimento da França. Com a coisa descambando, e o problemático Souleymane (Franck Kesta) sendo conduzido à diretoria. Em outro instante, o já citado Boubacar é perguntado sobre o que lhe daria "vergonha". A resposta dele deixa uma pulga atrás da orelha: "sentar na mesma mesa para almoçar com a mãe de Burak". O que nos leva a inferir a respeito da complexidade das relações religiosas, raciais e culturais como um todo. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano, Entre os Muros da Escola segue como uma experiência engenhosa, que faz um verdadeiro raio x de uma sala de aula, com cada aluno funcionando como um indivíduo de personalidade distinta e com o professor sendo apresentado não como um Deus intocável, mas como uma pessoa cheia de imperfeições, mas que tenta fazer o melhor. Magnífico é pouco. 


terça-feira, 6 de maio de 2025

Pitaquinho Musical - Josyara (AVIA)

Um disco sobre o mais universal dos assuntos e que nunca parece se esgotar: o amor. Assim é AVIA, o terceiro registro de inéditas da sempre ótima Josyara e que tem como narrativa central o "encontrar-se e o perder-se no outro, as delícias e implicações disso" - como a artista baiana explicou em entrevista à Revista Noize. Sedutor, enigmático, minimalista mas intenso, esse é um álbum que trafega com naturalidade por todas as etapas da paixão, indo do fascínio inicial ao desencanto, passando no meio do caminho pelas possibilidades da solitude e, mais adiante, pelo entusiasmo de um novo amor. Nesse sentido, basta ouvir os versos que se encadeiam de forma homogênea em canções como Eu Gosto Assim (Sou bem fácil de acessar) - releitura de Anelis Assunção -, Festa Nada a Ver (Como pode me deixar / Nessa festa nada a ver), Corredeiras (Não, não preciso dessa mágoa) e De Samba em Samba (Não tem mais amor que te faça ficar / Não há mais nada que eu possa fazer), pra perceber como se estabelece esse conceito.

 


Peça central do trabalho, a deliciosa e sensualíssima Seiva tem um violãozinho cadenciado, que se espalha em efeitos eletrônicos econômicos, que culminam em um dos melhores refrãos da temporada (Pra te beber em taça cheia / Aluar / Sonho teu sabor cereja / Quero provar / Dança mansa / Pé na areia / Te embalar / Me lambuzar na tua seiva / Quero gozar). Com co-produção de Rafael Ramos e parcerias com nomes como Liniker, Pitty, Juliana Linhares, Pitty e Iara Rennó, este também é um álbum muito mais colaborativo do que, por exemplo, o anterior ÀdeusdarÁ (2022), uma experiência mais solitária e intimista - e que foi o nosso vigésimo colocado na lista de melhores discos nacionais daquele ano. Contemporâneo, mas sem perder a conexão com suas raízes ancestrais, este é um projeto que parece delicado em sua sonoridade, mas que é potente em suas entranhas.

Nota: 8,5

Tesouros Cinéfilos - Mulheres Diabólicas (La Cérémonie)

De: Claude Chabrol. Com Sandrine Bonnaire, Isabelle Hupert, Jacqueline Bisset e Jean-Pierre Cassell. Suspense / Drama, Alemanha / França, 1995, 112 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM SPOILERS]

Houve uma vez, durante uma entrevista ao famoso crítico de cinema Roger Ebert, que Claude Chabrol afirmou: "sou um comunista, mas isso não significa que eu tenha que fazer filmes sobre a colheita do trigo". Talvez, em uma interpretação meio livre, o que o diretor quisesse dizer é que, para se fazer um filme político ou mais panfletário, que marque seu ponto (ou ideologia), não há a necessidade de ser tão explícito. Até mesmo porque a sutileza pode contribuir para que o debate seja fortalecido. Sim, filmes sobre greves de trabalhadores por condições mais justas ou sobre proletários sofrendo nas mãos de patrões certamente escancaram os ideias de quem os faz. Mas e que tal uma obra sobre uma empregada doméstica que, revoltada pelas sistemáticas humilhações que sofre de uma família burguesa, resolve se unir a uma amiga funcionária dos correios para dar cabo desses ricos afetados?

E, mais do que isso, que tal se colocássemos nessa equação uma dupla de atrizes cheias de personalidade - no caso, Sandrine Bonnaire e Isabelle Huppert -, e ainda envolvêssemos a produção em uma aura de mistério à moda Hitchcock (que é algo que Chabrol sempre fez muito bem), com acontecimentos excêntricos se espalhando pela narrativa? Sim, enquanto a personagem da Regina Casé no ótimo Que Horas Ela Volta? (2015) simboliza a vitória do proletariado com uma arrojada entrada na piscina dos patrões (o que ela era impedida, mesmo sendo parte da "família"), em Mulheres Diabólicas (La Cérémonie), temos as protagonistas meio que ficando de saco cheio, invadindo a casa dos burgueses torpes que haviam recém demitido a diarista Sophie (Bonnaire) para, enquanto eles apreciavam uma ópera enfadonha de Mozart, sacarem suas armas e meterem bala. Extremo? Sim. Simbólico? Bastante.

 


 

Ok, por mais que não seja possível celebrar uma vitória plena na conclusão desse clássico moderno que completa 30 anos - baseado no livro de Ruth Rendell e que pode ser conferido na Reserva Imovision - há que se comemorar o espírito catártico, quase anárquico do desfecho, que junta um clima meio Laranja Mecânica (1971) com Violência Gratuita (1997). Chabrol sempre afirmou ser um sujeito fascinado por "assassinos sorridentes" e aqui essa parte da gargalhada entortada, em que a gente ri mas mais de nervoso do que qualquer outra coisa, cabe à debochada Jeanne, vivida com entusiasmo por Huppert. É ela que parece arquitetar, em suas entranhas, algum tipo de plano macabro que possa compensar Sophie das seguidas humilhações sofridas por ela, vinda de uma família de quatro pessoas (pais com dois filhos), com seu casarão onipresente, de jardim largo. E por mais atenciosa e estranhamente sorridente que a patroa, a afetada dona de uma galeria de arte chamada Catherine (a sempre bela Jacqueline Bisset) seja, parece haver algo muito errado no fato de ela nunca conseguir manter uma diarista.

Claro que Sophie também tem os seus segredos. Em um mundo em que nem o mais favorável espírito meritocrático a salva do analfabetismo  - o que ela esconde com receio e vergonha e que também dá conta das desigualdades vividas naquele cenário -, a jovem se mantém silenciosa e reservada, enquanto prepara os pratos cheios de proteína para aquela família que só tem dinheiro e mais nada. Mesquinha, Catherine sequer parece perceber o absurdo de apontar onde fica o quartinho da empregada, ao passo que seu marido mais ou menos truculento Georges (Jean-Pierre Cassell) não vê problema algum em desferir um tapão no rosto de Jeanne, quando ele desconfia de que ela esteja abrindo suas correspondências. Esses abusos justificam a violência desmedida? Talvez não. Sophie e Jeanne tem uma série de esqueletos no armário e traumas passados, que revelam que elas também não são flor que se cheire - o que, por sinal, é ótimo em uma narrativa que evita o maniqueísmo. Ainda assim, o filme tem força por lembrar às elites a importância de não meter demais o louco. Porque o proletariado pode se revoltar. E aí as forças, no mínimo, vão se equilibrar.

 

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Cinema - Pequenas Coisas Como Estas (Small Things Like These)

De: Tim Mielants. Com Cillian Murphy, Emily Watson, Eileen Walsh e Zara Devlin. Drama, Irlanda / Bélgica / EUA, 2024, 98 minutos.

Não são poucas as cenas em que assistimos Bill Furlong (Cillian Murphy), o protagonista de Pequenas Coisas Como Estas (Small Things Like These), lavando freneticamente as mãos. É algo que faz total sentido, já que o sujeito é um comerciante de carvão do interior da Irlanda que, ao final de mais um dia de trabalho, tem como ritual sagrado essa higienização. Só que, para além do sentido de se limpar antes de ir ao encontro da família, parece haver ali, naquele esfregar que parece evoluir de maneira sôfrega, uma alegoria a respeito da tentativa de se livrar de um outro tipo de sujeira. Algo que vai ficando claro - por mais sutil que tudo seja - conforme a narrativa se desenrola e de como entendemos, em alguma medida, os traumas de Bill do passado. Especialmente aqueles que envolvem o complexo relacionamento com a sua mãe. Entre memórias dolorosas que vêm e vão, o homem parece considerar a possibilidade de, no presente, minimizar esse sofrimento.

Claro que nem tudo será fácil. Ao menos não de maneira óbvia - ainda mais quando percebemos qual a ponta forte nesse jogo de poder entre um trabalhador e as instituições religiosas que operam na pequena New Ross. O ano é 1985 e o Natal se aproxima. Bill tem uma série de entregas de cargas de carvão, já que o frio parece crescer de maneira palpável - e em obras do tipo, não deixa de impressionar como as paisagens enevoadas, as estradas cinzentas e o céu sempre nublado, parecem contribuir para uma espécie de melancolia onipresente, que se espalha para além da trama. Para as bordas, para os limites. Que tornam tudo mais desolador. E tenso. Ainda que essa tensão, esse medo, não fique exatamente claro. Há um tipo de horror que parece incrustado naquela rotina - e que parece rondar a vida um tanto simplória do protagonista, um homem bem casado, com a amorosa Eileen (Eileen Walsh) e pai de cinco filhas.

 

 


Em certa altura, Bill faz uma entrega em um convento local - um espaço taciturno, fechado, pouco convidativo. Enquanto está no galpão despejando os sacos de carvão, consegue espionar uma jovem sendo entregue à força no local. Ela implora aos gritos para não ficar ali. Chama por sua mãe ou por alguém que lhe socorra. Bill fica paralisado. Não consegue agir. E assim permanece, meio letárgico. Olhando pela janela, enquanto a vida acontece. Por meio de flashbacks, descobriremos que sua versão menino era a de uma criança dócil, fã livros de Charles Dickens, de música e de quebra-cabeças. Em suas memórias, perceberá aos poucos como a infância relativamente feliz ao lado de sua mãe Sarah (Agnes O'Casey), escondia segredos que refletiriam no presente. E certamente não é por acaso que ao encontrar uma jovem escondida no mesmo depósito de carvão do convento, dias depois, ela revele que se chama Sarah (Zara Devlin). E que está grávida de cinco meses.

[SPOILERS A PARTIR DAQUI] Quem já assistiu ao ótimo - e sempre impressionante - Em Nome de Deus (2002) que, infelizmente não está disponível em nenhuma plataforma de streaming -, não demorará para compreender do que se tratam aqueles conventos. Famosas na Irlanda, especialmente no século passado, as Lavanderias Madalena - um tipo de asilo católico para mulheres - funcionavam como um espaço para onde eram enviadas mulheres supostamente pecadoras ou depravadas. Ou mesmo órfãs, abandonadas pelas famílias, vítimas de abuso (sim), prostitutas e outras. Lá, além de terem sua liberdade cerceada, eram escravizadas e humilhadas, com jornadas de trabalho excruciantes e sem espaço para discussão das penas. Sarah, a jovem grávida, tenta escapar de todas as formas desses rituais de tirania travestidos de "amor de Deus" e busca por salvação. Em confronto com a madre superiora (e asquerosa), Mary (Emily Watson), a religiosa tentará comprar o silêncio de Bill. Mas talvez ela não possa comprar as atitudes. E, bom, pode ser o caminho para que as portas, vagarosamente, se abram.

Nota: 8,0 


terça-feira, 29 de abril de 2025

Novidades em Streaming - Mickey 17 (Mickey 17)

De: Bong Joon-ho. Com Robert Pattinson, Steven Yeun, Mark Ruffalo e Toni Collette. Ficção Científica / Comédia / Aventura, Coréia do Sul / EUA, 2025, 138 minutos.

"Ei, Mickey, qual a sensação de morrer?". Essa é uma pergunta que o protagonista de Mickey 17 (Mickey 17), vivido por Robert Pattinson, ouve diversas vezes no transcorrer da história. Como é esse sentimento? "Digamos, você está acostumado com isso". E, bom, esse dilema poderia marcar o ponto de partida de mais uma ficção científica com um viés mais existencialista - e que é o tipo de projeto que, em muitos casos, adoro. Aliás, não são poucos os exemplos bons de distopias do tipo - de bate-pronto lembro do ótimo Lunar (2009), que deve estar escondido em alguma plataforma de streaming e que fez sucesso antes de Black Mirror ser o que é hoje. Só que essa coisa de o mundo em 2025 operar como um grande Black Mirror em edição estendida traz também um problema: parece mais difícil sermos surpreendidos. Ou nos impressionarmos. Ainda mais ao sabermos que as consecutivas mortes de Mickey são apenas parte daquele contexto. Como é partir desta pra uma melhor? Ou, mais do que isso, como é ser simplesmente descartado? São perguntas que param no meio do caminho.

Porque o caso é de que nessa obra de Bong Joon-ho - sim, o nome por trás não apenas do oscarizado Parasita (2019), mas também de outras joias do cinema alternativo, como Expresso do Amanhã (2013) e Okja (2017) -, pouco importa a morte, a vida ou as possíveis reflexões sobre luto, memória, futuro ou passado. O capitalismo tardio é um problema de AGORA e é nele que o livro do romancista Edward Ashton, escrito em 2022, parece centrar sua força. Sim, as questões tecnológicas estão todas ali - e as operações que envolvem esses avanços podem até gerar um certo impacto (especialmente do ponto de vista do mercado, dos empregos e da substituição do homem pela máquina). Só que, nesse sentido, diferentemente do que ocorre em experiências mais metafísicas, aqui temos o exame da necessidade apenas de sobreviver. De ascender. De forma inadiável e individualista. Nem que para isso seja necessário morrer. Para viver. Num paradoxo legítimo do século.

 


Em alguma medida, esse tipo de conflito em um cenário pós-apocalíptico, com pessoas tentando sair de um espaço de vulnerabilidade a qualquer custo, já havia sido explorado no citado O Expresso do Amanhã. Aqui, Mickey é um sujeito de vida simples, um empresário do baixo escalão que, desesperado com a perseguição de um agiota com cara de poucos amigos que deseja a sua cabeça numa bandeja, resolve se inscrever em uma expedição espacial em um cargo nomeado de "dispensável" - que é o integrante da tripulação incumbido de realizar uma série de tarefas perigosíssimas no espaço e em novos planetas. Tarefas que podem resultar na sua morte, o que não chegará a ser exatamente um problema, já que ele já teve uma morte previamente induzida (de seu eu real), com sua memória sendo preservada e restaurada, o que lhe permitirá uma espécie de retorno infinito a partir de um processo de reimpressão (em que ele ressurge como um clone, com mente reimplantada e tudo). Sim, parece estranho. É. E até aí tava tudo mais ou menos interessante.

Só que não demora para que Mickey desenvolva um sentimento de paixão - algo legitimamente humano - pela agente de segurança Nasha (Naomi Ackie), que é outra viajante que está na expedição em direção do gelado planeta Niflheim. E, como dei a entender anteriormente, as coisas dentro da nave poderiam ser bastante estranhas se não fosse a vida real. Do mundo que fica pra trás pouco se sabe, que não seja o fato de o nosso planetinha ter se tornado uma espécie de Terra de ninguém. A replicação de clones não está permitida em solo terrestre, até mesmo pela controvérsia que poderia gerar (e é uma pena que não haja mais espaço para esse debate). Ainda assim o congressista Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), que parece uma mistura de Elon Musk com Donald Trump (bem apropriada ao momento), deseja levar seu plano de colonização adiante. Arrumando uma brecha para que o procedimento da cópia humana role solta no espaço. E, bom, depois disso o filme envereda pra ação, pra perseguição, com clones dos clones em confronto, um romance torto que a gente nunca se importa inteiramente, um líder lunático tentando dominar o universo, uns bichos meio estilo Star Wars bem amigáveis e um sem fim de alegorias caóticas que poderiam ser resumidas com um "veja bem, galera, talvez pudéssemos ser melhores do que isso". Só que é um filme que morre pelo caminho. E não há clone que resolva.

Nota: 5,5 


segunda-feira, 28 de abril de 2025

Novidades em Streaming - Código de Ética (Elfogy a Levego)

De: Katatlin Moldovai. Com Ágnes Krasznahorkai, Soma Sándor, Tunde Skovran e Áron Dimény. Drama, Hungria, 2023, 104 minutos.

Ana (Ágnes Krasznahorkai) é uma professora exemplar de Artes e Literatura do Ensino Médio. Tem uma reputação ilibada, é respeitada pelos demais docentes e muito querida pelos alunos. Aliás, seus resultados são excelentes não apenas em sala de aula, local em que ela é capaz de gerar interesse genuíno dos estudantes por autores e poetas - com métodos divertidos que tornam as aulas sobre Whitman e Baudelaire mais leves -, mas também após a conclusão do terceiro ano, em vestibulares na sequência da vida acadêmica. Desde que ela começou a lecionar há mais de 10 anos no educandário húngaro Balassi é assim. Só que lá pelas tantas, Ana comete um "grave" erro. Ela resolve sugerir aos seus pupilos - um grupo de jovens na faixa de 17 anos -, uma atividade extracurricular: assistir ao filme Eclipse de Uma Paixão (1995), que conta a história dos autores dos escritores Verlaine e Baudelaire que, não apenas foram contemporâneos, mas viveram um tórrido relacionamento.

Aparentemente não há nenhum problema ou algo que impeça adolescentes próximos de atingir a maioridade assistirem a esse tipo de conteúdo, né? Esconder a homossexualidade, a diversidade das preferências sexuais ou tentar fazer com que os jovens passem ao largo de obras do tipo, simplesmente fará os gays e as lésbicas desaparecem da face da Terra, né? Claro que não. Sempre haverá um pai de família preocupadíssimo com as suas crianças - aquele "cidadão de bem" exemplar, que acha que se seu pobre filhinho tiver contato com produções como a citada acima, ele se converterá automaticamente em um ouvinte assíduo da Lady Gaga, um seguidor de Ru Paul e suas drag races e um defensor contínuo da cultura woke e do gayzismo cultural. Sim, pessoas trans usando banheiros unissex costuma ser uma preocupação permanente do conservador reacionário que adere à extrema direita. Enquanto o mundo derrete - e não apenas do ponto de vista ambiental.

 


Bom, não é preciso dizer que o ótimo Código de Ética  (Elfogy a Levego) - confesso que o título em português não me agradou muito -, é atualíssimo. Ainda mais em tempos em que pais e mães preocupadíssimos com aquilo que seus filhos consomem (mais em sala de aula do que na internet, imagino), se sentem autorizados a interferir em ementas ou conteúdos programáticos de instituições de ensino - e basta lembrar do recente caso envolvendo o ótimo livro O Avesso da Pele, de Jéferson Tenório, e toda a celeuma causada na nossa adoentada sociedade, pra percebermos que o que se vê no filme, que está disponível pra aluguel em diversas plataformas de streaming, é de um realismo atroz. É mais ou menos aquilo que encontramos no também formidável curta metragem indicado ao Oscar O ABC da Proibição dos Livros (2024) ou mesmo, de forma meio enviesada, no espetacular filme romeno Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (2021).

Ana apenas indica um filme. Que os alunos sequer são obrigados a assistir. Mas Viktor (Soma Sándor), um jovem de grande sensibilidade e que tem um interesse genuíno por teatro e poesia, resolve conferir a obra no espaço privativo do seu quarto. Tudo corre mais ou menos bem até o seu pai entra no quarto e o flagra assistindo a produção. "Meu Deus, dois homens se amando?". Ok, ele não verbaliza isso. Mas pensa. E vai cobrar uma posição da escola sobre o fato de uma professora estar passando pornografia, pederastia ou o que quer que seja para os estudantes. Há um pano de fundo interessante sobre o educandário estar prestes a completar 150 anos de atividades e estar na dependência da liberação de uma linha de crédito de possíveis investidores para a sua continuidade - sendo o pai de Viktor uma pessoa influentíssima nesse sentido. "Mandei meu filho para a escola para ter uma educação adequada", esbraveja na sala da diretora esse provável seguidor apaixonado de Viktor Órban e do Escola Sem Partido. A verdade é que só muda o País. Enquanto as calotas polares derretem, a guerra comercial escala e os imigrantes são tratados como a escória humana, alguns pais acreditam em lavagens cerebrais de esquerda, em comunismo abstrato ou em ideologia de gênero. O mundo anda pra trás. E nós que lutemos.

Nota: 9,0 


quarta-feira, 23 de abril de 2025

Cine Baú - Pavor nos Bastidores (Stage Fright)

De: Alfred Hitchcock. Com Jane Wyman, Marlene Dietrich, Richard Todd e Alastair Sim. Suspense / Drama, Reino Unido, 1950, 110 minutos.

Muitas vezes tido como um filme menor de Alfred Hitchcock, Pavor nos Bastidores (Stage Fright) possui uma camada mais abaixo que parece dialogar perfeitamente com os cenários labirínticos da casa de espetáculos em que boa parte da trama se desenrola. E que envolve o poder da atuação. Da persuasão. Da arte de interpretar papeis e, em última análise, enganar o público. Filmes de suspense com triângulos amorosos, mulheres fatais, investigadores charmosos, assassinatos e motivações escusas não eram uma novidade nos anos 50 - e o próprio diretor inglês já havia encarreirado alguns clássicos no gênero. Mas aqui há uma alegoria meio óbvia sobre papeis se modificando o tempo inteiro, como no caso de Eve Gill (Jane Wyman), a aspirante a atriz que, mais adiante se converte não apenas em uma jornalista improvisada, mas também em uma empregada.

Claro que esse comportamento camaleônico tem um propósito: o de proteger o namorado Jonathan Cooper (Richard Todd), que se torna o principal suspeito do assassinato do marido da excêntrica cantora Charlotte Inwood (Marlene Dietrich), com quem estaria tendo um caso. Mas claro que num ambiente teatral e de ilusões como o dos palcos, nada será o que parece. Quando o filme - que é inspirado em um romance de 1947 escrito por Selwyn Jepson - inicia, Jonathan interrompe um ensaio de Eve para lhe relatar um grave caso: o de que Charlotte o teria visitado após assassinar o próprio marido, com o vestido sujo de sangue. Para auxiliá-la, o sujeito teria ido até a casa da cantora para buscar uma outra muda de roupas, tendo na ocasião a ideia de modificar o cenário, mexendo em moveis, quebrando portas, espalhando papeis para dar a impressão de ter havido, ali, um assalto brutal.

 


Só que, enquanto o marido de Charlotte jaz no chão, Jonathan é surpreendido por Nellie Goode (Kay Walsh), a governanta que retornava a casa e que, talvez o tivesse flagrado lá dentro. Em resumo, ele consegue fugir da polícia e agora precisa da ajuda de Eve, que o leva até a casa do seu pai (Alastair Sim), um sujeito bem humorado e extravagante que reside na costa, em uma residência idílica. Só que enquanto protege o namorado, Eve inicia uma espécie de investigação a parte. Primeiro faz amizade com o detetive Wilfred Smith (Michael Wilding). Após, finge ser uma repórter que está escrevendo uma matéria sobre o caso, subornando Nellie para que ela se finja de doente, apresentando Eve como a prima distante Doris, para que esta passe a trabalhar com Charlotte. Esse vai e vem parece confuso e parte do charme está justamente no esforço da protagonista em modificar de papel a cada novo encontro - o que faz a narrativa se desenrolar.

Por fim, Eve acha um tanto curioso o fato de Charlotte ter recém se tornado viúva, o que não a impede de se apresentar nos palcos. "O show tem de continuar", afinal - e é inegável o impacto da ambígua cena em que a personagem de Dietrich se apresenta em um palco onírico, cheio de plumas e outros adereços, ao som de The Laziest Gal in Town, de Cole Porter (aquela dos clássicos versos "não é porque eu não deveria / Não é porque eu não faria / E, você sabe / Não é porque eu não poderia / É simplesmente porque / Eu sou a garota mais preguiçosa da cidade"). Com idas e vindas, excelentes interpretações e ótimas surpresas, Pavor nos Bastidores seria criticado, mais tarde, por enganar o público até demais, utilizando como recurso um flashback pouco confiável (pra não dizer falso). Ainda assim, se levarmos em conta o uso do próprio teatro como símbolo da arte - escapista ou não - e de como nos refugiamos por duas horas nesse espaço tão artificial quanto elegante, o fato de sermos deliberadamente manipulados, nos parecerá apenas mais um truque certeiro de Hitchcock. Eu passo pano.

 

Pitaquinho Musical - Marina Sena (Coisas Naturais)

Menos autotunes enfadonhos, efeitos eletrônicos previsíveis, forçação tiktoker e latinidade plastificada e mais brasilidade, mais bucolismo, mais interior e mais vida real. Vento batendo no rosto, estrelas nítidas no céu. Uma varanda à beira-mar e uma espécie de retorno às origens. Sim, desde o cru De Primeira (2021), Marina Sena nunca deixou de ser uma das mais autênticas artistas da atualidade, por mais que o trabalho seguinte, o sensual e noturno Vício Inerente (2023) parecesse um registro menos criativo (ou mesmo de alguém que ainda estava tateando na busca por um caminho na carreira). Só que qualquer incerteza parece definitivamente apagada com a chegada do terceiro álbum, o ótimo Coisas Naturais - que é resultado de uma série de gravações fluídas, feitas em um sítio no interior de São Paulo, na companhia de seus antigos parceiros d'A Outra Banda da Lua, André Oliva e Matheus Bragança, além do produtor musical Janluska.

 


 

Foi esse time que auxiliou Marina nesse processo de reconexão artística - uma imersão que envolveu outros músicos, todos com bastante tempo pra criar, pra exercer o "ócio criativo". Em entrevista para a revista Rolling Stone, a cantora explicou ter sentido falta dessa Marina mais sangue no olho, mais destemida, mais corajosa do começo da carreira. "Mais norte de Minas" e mais Brasil enquanto um País latino. Levando em conta o conceito de Florestania, cunhado por Ailton Krenak, a artista converte o disco em uma verdadeira coletânea de canções que mesclam estilos diversos, como MPB setentista, funk, reggae, brega, bedroom pop e reggaeton, preservando o contato com a natureza e com o místico. Peça central do trabalho, o single Numa Ilha, parece resumir a ideia já na abertura, com uma experiência sensorial de sonoridade misteriosa e letra calorosa (Descalça numa ilha, é tão mágico / Você dizendo que me ama / A Lua refletindo o mar, o seu cheiro / A gente junto na minha canga). Claro, há outros grandes instantes, como em Anjo, Mágico e Lua Cheia. Marina está na melhor fase. O público agradece.

Nota: 8,5